Não há dúvida, a maior surpresa tecnológica do começo deste ano foi a DeepSeek. A inteligência artificial abalou as estruturas do mercado e de vários governos ao redor do mundo, já que se propôs a ser uma versão muito mais barata dos que “rivais” ocidentais como o ChatGPT, Google Gemini, Meta AI.
A despeito das discussões e das suspeitas de que os desenvolvedores podem estar mentindo, até agora a versão oficial é de que foram gastos “apenas” US$ 6 milhões (cerca de R$ 34 milhões na cotação atual) no desenvolvimento da DeepSeek. Para efeitos de comparação, os custos para desenvolver as ferramentas mais conhecidas de IA alcançam a casa dos bilhões de dólares.
O impacto da IA chinesa foi tanto que alguns líderes das principais big techs chegaram a elogiar a ferramenta em público. Sam Altman, CEO da OpenAI, do ChatGPT, disse que o modelo de linguagem utilizado pela DeepSeek é “impressionante”.
O chefão da Meta, Mark Zuckerberg, reconheceu que o sistema chamou sua atenção, mas disse que não estava preocupado com a nova tecnologia. Satya Nadella, CEO da Microsoft, disse que a DeepSeek trouxe “inovações reais” e um porta-voz da Nvidia argumentou que a nova IA representa um “excelente avanço”.
O que o fenômeno DeepSeek ensina?
Além de espantar líderes, especialistas e até usuários comuns, a DeepSeek chacoalhou também o mundo das finanças. A Nvidia – que é uma das empresas que melhor tem se saído neste boom de IA – chegou a perder quase US$ 600 bilhões (R$ 3,4 bilhões) em valor de mercado em apenas um dia.
De maneira geral, companhias ligadas à inteligência artificial dos Estados Unidos e Europa perdem aproximadamente US$ 1 trilhão (R$ 5,7 trilhões) nas bolsas de valores mundo afora.
A resposta para a queda tão acentuada é que os investidores começaram a perceber que talvez o setor de IA vive uma espécie de bolha. A percepção foi de que talvez as gigantes estivessem gastando um dinheiro desnecessário, já que a DeepSeek apresenta resultado igualmente surpreendente a um custo infinitamente menor (pelo menos na teoria).
Falando ao TecMundo, Arthur Igreja, especialista em Tecnologia e Inovação, o fenômeno DeepSeek deixa várias lições. Uma delas é que o mercado não está completamente fechado e é possível a entrada de novos players como novas startups. “O maior ensinamento é que dá para ter boas oportunidades não só nas aplicações, mas no desenvolvimento, em uma participação mais efetiva”, destaca.
Marcos Barreto, professor da Escola Politécnica da USP e da Fundação Vanzolini, não só o DeepSeek, mas a IA de maneira geral mostra que os países podem se tornar mais industriais. No caso do Brasil, a IA poderia ser uma oportunidade de deixarmos “de depender somente do agronegócio” e crescermos a “parte de serviços”.
IA como revolução tecnológica
Outro tópico importante no debate acerca da explosão da DeepSeek foi o impacto na privacidade. Assim como praticamente todas as ferramentas de IA, não se tem com muita clareza quais dados foram utilizados para treinamento e até que ponto quem utiliza a plataforma está seguro quanto a suas informações pessoais.
Utilizando desta justificativa e apelando, obviamente, para questões de soberania nacional, vários governos já estão proibindo ou pelo menos restringindo o uso da DeepSeek. São os casos de Austrália, Taiwan, Itália, Coreia do Sul e Países Baixos (Holanda).
Nos Estados Unidos, parlamentares começaram a debater um possível banimento, depois que o Google reclamou da tecnologia e pediu união nacional para tentar combater a novidade.
Neste sentido, por mais que vários países adotem uma postura protecionista e às vezes até um pouco nacionalista contra a invenção da China, há certo sentido no que está sendo feito. As IAs – principalmente as generativas – têm se mostrado o próximo fenômeno da revolução tecnológica.
O Brasil está ‘perdendo o bonde’ da IA?
A Inteligência Artificial é uma tecnologia que já está nos mais diferentes dispositivos e soluções que as pessoas nem imaginam. Nos videogames, por exemplo, alguns jogos já têm sistemas robustos de IAs que controlam os NPCs (personagens não-jogáveis) e interagem com o seu personagem.
Nos celulares, aplicações de IAs estão nos assistentes de voz, traduções em tempo real, reconhecimento facial e mais. Até nos sites de compras elas estão lá. Sabe as recomendações de produtos que você recebe e percebe que tem tudo a ver com o que você gosta? São IAs que capturam informações suas para customizar a recomendação mais assertiva possível.
Neste cenário em que a IA está em praticamente tudo, há vários riscos. O primeiro é o perigo da própria existência dela.
“Uma coisa que me chama a atenção é o treinamento, que pode reescrever a história. No caso da DeepSeek, ele dá uma resposta evasiva quando perguntado sobre o evento de Tianjament Square, como se não tivesse acontecido, por exemplo. Então há aqui uma questão crítica que é acreditar nas respostas que eles dão e isso se tornar verdade daqui para frente”, destaca Barreto.
Do outro lado, Igreja lembra que também há riscos envolvidos em não desenvolver plataformas assim. Ele lembra que Brasil não é – nem de longe – um protagonista no setor e está muito distante dos líderes, o que pode deixar o país em um cenário complicado lá na frente.
“O grande risco é que, para variar, o Brasil está atrasado. Aconteceu o mesmo com o telecom, com computadores, com a internet, se repetiu com 3G, 4G, 5G. Isso indica que, em alguma medida, o Brasil não aprendeu com esse atraso e demora ao longo dos anos”, aponta.
O que impede o Brasil de desenvolver uma IA própria?
Como já era claro e ficou ainda mais evidente com a DeepSeek, soluções de inteligência artificial já podem ser encaradas como questões de segurança nacional. Afinal de contas, é perigoso depender de ferramentas que podem utilizar dados sensíveis para serem treinadas.
Contudo, ao pensarmos em como o Brasil poderia pensar em desenvolver sua própria tecnologia, várias barreiras surgem pelo caminho. Primeiro, o país ao menos tem leis próprias que regulam o tema.
O Marco Legal da Inteligência Artificial (PL 2338/2023) foi aprovado no Senado no final do ano passado e agora está em tramitação na Câmara dos Deputados, sem previsão de votação. Arthur Igreja diz que as regras têm um “papel central”, já que define toda a legislação de determinado tema.
Uma Inteligência Artificial própria já pode ser considerada uma questão de soberania nacional. (Imagem: Grok/Inteligência Artificial)
O professor Marcos Barreto diz que se levarmos em consideração os valores anunciados para o desenvolvimento da DeepSeek, dinheiro também não seria um problema. Contudo, ele alega que outra dificuldade para o Brasil é que não há dados suficientes para o treinamento dos modelos de IA.
“Mas a gente precisa ter um mercado. Se não tivermos um uso dessa IA Brasileira que se justifique, eu entendo que fica sem sentido [desenvolver uma IA. O fato é que precisa que a iniciativa se sustente economicamente. Precisamos pensar em tecnologias que sirvam ao Brasil e usar nosso tempo para fazer outras coisa”, destaca.
Brasil já tem iniciativas do setor privado
Enquanto se debatem soluções governamentais, o Brasil já tem iniciativas privadas. Dentre elas está a Amazônia IA, um modelo lançado em julho de 2024 pela WideLabs, que é uma empresa brasileira de Inteligência Artificial Aplicada.
Em entrevista ao TecMundo, Beatriz Ferrareto, Partner & Chief of Business Development da WideLabs, comenta que esse trabalho de se pensar numa IA própria deve ser uma prioridade.
“O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação desempenha um papel fundamental ao incentivar projetos que reduzam nossa dependência de soluções estrangeiras e fortaleçam uma IA brasileira que reflita nossos interesses, garantindo soberania digital e competitividade internacional. O Brasil não pode se limitar ao consumo de tecnologias externas; é essencial que também seja protagonista na sua criação”, defende.
A Amazônia IA é gratuita, assim como outros serviços de IA generativa. (Imagem: Carlos Palmeira/TecMundo)
“O verdadeiro desafio está em fortalecer esse ecossistema, garantindo investimentos contínuos e políticas públicas que incentivem a evolução da IA nacional. Somente assim o Brasil poderá consolidar sua independência tecnológica e competir globalmente com soluções alinhadas com seus interesses estratégicos”, acrescenta.